A Casa Desunida

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Perdidos na perplexidade da desarmonia do Estado, o Brasil se arrisca a deixar de lado o problema fundamental que é sua própria razão de ser: a trilogia liberdade, igualdade, fraternidade, no mote da revolução francesa, o direito à felicidade, na fórmula de Jefferson. O que, quando comecei a fazer política, há tantos anos, chamávamos de justiça social.

A fraternidade tem sido pequena, um tema que ficou relegado aos líderes das grandes Igrejas. A liberdade encontra-se envolta em contradições, admitida nas leis, mas irrealizável pelas limitações econômicas e sociais. E a igualdade vai, dia a dia, diminuindo. Nunca o mundo foi tão desigual, nunca as sociedades foram tão desiguais.

Há, para começar, o problema da riqueza. Uns poucos por cento, muito ricos, detêm a maior parte dela, no mundo ou aqui. Somos, infelizmente, o mais desigual entre os grandes países. Basta isso para assinalar a gravidade do problema.

Embrulhada nas malhas da economia, a desigualdade tem marcas igualmente fortes, mas talvez menos visíveis, no acesso ao cerne da justiça social: a educação, a saúde, a segurança. A tecnologia, que livrou o homem de doenças terríveis, que permitiu comunicações instantâneas, que dá acesso a uma soma de conhecimentos inimaginável, é incapaz de resolver esse dilema. É um problema político, no melhor sentido, no único que vale a pena.

A  educação generalizou-se quando os países decidiram criar o que se chamou “educação pública”. A obrigação de todos frequentarem escolas aconteceu sobretudo no século XIX; e não só nos países mais ricos, pois temos o exemplo da Argentina e do Uruguai, que a universalizaram naquela época. A nossa Constituição a coloca entre os direitos fundamentais, mas a prática é outra: a grande concentração de investimentos é no ensino privado, vale dizer, na formação de quem já tem o privilégio da condição econômica.

No regime de bem-estar social a saúde é gratuita e acessível a todos. Foi o que pretendi fazer criando o SUDS e foi consolidado pelos constituintes no SUS. Mas o professor Pinotti mostrou, num livro que devia ser leitura obrigatória dos homens públicos, como o SUS foi sendo sistematicamente atacado nos últimos 30 anos. Resultado: a saúde é um privilégio dos que podem pagar.

A desigualdade é também racial: é evidente que não resolvemos, nem mesmo temos enfrentado à altura a herança maldita da escravidão. Os descendentes de escravos são os mais pobres entre os mais pobres, as maiores vítimas entre as vítimas de violência.

Um dos grandes ensinamentos cristãos é que “a casa dividida não permanece”. O País precisa superar suas divisões, a maior delas entre os que têm e os que não têm.

A preguiça e a Covid

por Jorge Aragão

Por José Sarney

A cada dia surgem descobertas e divulgam-se trabalhos acadêmicos sobre as consequências da Covid-19 e os efeitos da necessária prevenção — ficar em casa, em quarentena, isolar-se — para evitar contágios e o sofrimento dos que ficaram com sequelas da doença, algumas graves, como as que atingem o cérebro, mostrou a Universidade de Oxford.

Graças a Deus, na minha idade, quando surgiu a epidemia e fui envolvido pelas noções da gravidade do que ela representava para o mundo e da minha vulnerabilidade, primeiro tive o sentimento do medo, aquele mesmo de que Petrônio, o filósofo, diz que fez o homem criar os deuses, numa teoria pagã. Segui à risca as recomendações médicas para evitar o contágio: lavar as mãos, usar álcool, evitar aglomerações e contatos — e a Ivermectina, o chá de casca de bacuri e outros fitoterápicos milagrosos com “alto poder de prevenção”.

Recolhi-me em casa durante mais de um ano, evitando receber amigos, refugiado nos livros e na escrita. Aí deu-me um banzo que me levou à solidão, da solidão ao receio de depressão, e depois me apareceu um desânimo que me afastou até dos livros e da escrita. Era uma coisa diferente, que eu nunca tinha sentido na vida, mas que era gostosa: o gosto de não fazer nada e de ficar com uma vontade entre dormir e ficar acordado, mas sem noção de tempo, sem nem querer saber se o tempo passava. Eu passei a vida sempre ocupado, sempre buscando trabalho, acreditando, como dizia Frei Antonio das Chagas, que “Deus pede […] conta do meu tempo”.

Seu contemporâneo, o Padre Vieira reclamava que aqui todos deixavam suas tarefas para os escravos, que tinham para fazer de um tudo, mas louvava a vida simples: “um punhado de farinha e um caranguejo nunca nos pode faltar no Brasil, e, enquanto houver algodão e tujucos, também não nos faltará de que fazer uma roupeta da companhia…”

Procurei saber o que estava sentindo, com medo de ser uma doença grave, era uma coisa que eu nunca tinha sentido. Seria o que se chama preguiça?

E não é que é mesmo preguiça? É preguiça. Eu, que nunca tinha tido isso na minha vida, comecei a gostar, e a minha quarentena me deu não somente solidão, mas preguiça. Dentro de algum tempo um cientista vai descobrir que o medo da Covid tem também o efeito correlato de trazer preguiça.

Agora quero confessar que ela é gostosa: a gente tem pensamentos maravilhosos não pensando em nada. É um vazio associado ao silêncio, também gostoso, e essa mistura aparece com um efeito mágico que faz bem, que é o gosto de não fazer nada. E eu, que recebi de Deus a graça de uma longa vida, só vim saber o que era a preguiça já nesta idade.

Assim, se você quiser saber de uma coisa diferente da vida, descubra a preguiça: é gostosa.

Saudades que não passam

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Vou fazer um interregno entre os temas políticos, as Olimpíadas, que mobilizam todas as atenções, e as mazelas nacionais, para abordar um tema pessoal que mexe com meus sentimentos e faz parte dos amores da minha vida.

Passei um ano e meio sem vir ao Maranhão, condenado ao isolamento domiciliar, sem culpa nenhuma, sem poder sair de casa pelo medo da pandemia. Fiquei ali, debruçado sobre meus livros e a minha compulsão de escrever, e tive medo de tudo, mas o que mais me tocou a vaidade e o cotidiano foi o medo de perder o prazer de andar. Desaprendi de andar e passei lutando para reaprender a levantar os pés do chão, para não ficar com aquele andar de velho, arrastando os pés.

Quando me perguntavam o porquê de minha reclusão tão forte dizia que era o desejo de ajudar o Criador a manter-me por mais alguns anos com o gosto da vida. E acrescentava, já com o otimismo de que era lá que o Criador me receberia: — Com a minha idade, se eu tiver alguma coisa, estou com o pé no Céu. Os inimigos diziam “com o pé no inferno”. Eu replicava que não tenho inimigos, tive só adversários e estou acabando com todos: cumprindo o pedido de Deus “perdoai os seus inimigos”, já perdoei a todos. Deus foi tão generoso comigo que nunca poderia negar-Lhe esse pedido, já que Ele me deu um temperamento voltado a amar o próximo e ser dado ao diálogo, a compreender os outros e nunca desejar mal a ninguém.

E durante esse período levei o mais longo tempo de minha vida sem vir à terra onde abri os olhos para o mundo: o Maranhão. Cunhei uma frase que caracteriza esse meu amor ao Maranhão, dizendo que era minha terra e minha paixão e, quando estou fora, não passo um dia sem ter saudades dele.

Nesse tempo em que não saía de casa, comecei a sentir de tudo, solidão, banzo, tristeza, dores nos braços, nas pernas, nas costas. Minha grande médica, que me assiste em Brasília, Dra. Núbia Vieira, já quase não tolerando mais as minhas queixas e não encontrando motivos para tantos males, disse-me — ajudada pelo frio danado que passou a fazer ali, com temperaturas não raro abaixo de 10º — que tinha chegado a um diagnóstico sobre meus males: “Sabe o que você tem e eu descobri como uma das mais raras doenças? Saudade. E para o que lhe falta não há melhor remédio que o descoberto pelos antigos: o calor do seu Maranhão.” Santo remédio! Não é que estão me julgando mais jovem, mais alegre e mais bonito?…

Arrumei as malas e meus trens, a modo de Minas, e vim passar uma temporada aqui, vendo “o mar do Maranhão / …onde o céu caiu no chão”, copiando a canção do Nonato Buzar.

Mas não podia terminar este artigo sem dizer que o Amapá, minha segunda terra, é também uma saudade que não passa.

Parlamentarismo e variantes

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Estamos mais uma vez discutindo o modelo eleitoral. Vai da discussão sobre a urna eletrônica, que — diga-se — tem funcionado muito bem, até o modelo presidencialista, seus defeitos e suas vulnerabilidades.

Responsabilizo por tudo isso a Constituição do 1988, cujos dispositivos sobre direitos fundamentais — civis e sociais — são impecáveis, mas com a ausência de uma ideia de constituição que fosse moderna e assegurasse no futuro estabilidade para as instituições e os governos.

Ulysses não quis receber o Projeto da Comissão Provisória, tida como Comissão de Notáveis, presidida pelo grande homem público Afonso Arinos, cujo objetivo era fazer uma constituição que recebesse a contribuição da sociedade civil organizada para que a nova Carta não fosse feita sem um projeto básico. Resultado: saiu uma Constituição híbrida, parlamentarista e presidencialista ao mesmo tempo. Deram poderes presidencialistas ao Parlamento e legislativos ao Executivo, cuja maior expressão foram as medidas provisórias, que mataram o poder de legislar do Parlamento — já foram editadas mais de mil medidas provisórias desde então.

Diante dessa dificuldade e deformação, o Parlamento fez um bypass e começou a utilizar emendas constitucionais, mais fáceis de aprovar do que um projeto de lei. Hoje, com 107 emendas fora as de revisão, mais que dobramos o tamanho da Constituição, tendo mais de 700 normas incluídas e de 300 alteradas.

Assim, quando, com grande elogio, digo que a Constituição de 88 assegurou o maior período de continuidade institucional no Brasil, tão sujeito a intervenções militares, eu faço a ressalva de que, nas crises, já tivemos dois impeachments para derrubar presidentes da República, que vivem em constante ameaça e são obrigados a fazer concessões que deformam o funcionamento normal do governo.

Do mesmo modo, agora, com a judicialização da política e a politização da Justiça, os impeachments passaram a recair e ameaçar os Ministros da Corte Suprema, o que também enfraquece a função da judicatura.

Para evitar esses males, devemos buscar a fórmula de um semipresidencialismo ou semiparlamentarismo que assegure que, nas crises, substitui-se o governo, mas não se submete o país e o governo à instabilidade do governante e à bagunça política. As fórmulas portuguesa e francesa, em que o comando das Forças Armadas é função presidencial, o presidente é eleito em eleições diretas, escolhe o primeiro-ministro, preside o conselho de ministros e tem o poder de dissolver a assembleia, tem dado certo. O Executivo é forte, mas compartilhado com o Parlamento.

O certo é que o atual modelo eleitoral brasileiro vai nos levar a um impasse que não sabemos como terminará.

E assim temos o complicador do voto proporcional uninominal, a proliferação de partidos e o modelo do financiamento público, que é impopular, pois tira dinheiro da Saúde, da Educação e pesa no bolso do contribuinte.

Em todas as legislaturas de que participei — foram treze —, houve discussão sobre reforma eleitoral, mas continuamos debatendo no Parlamento sobre a mesma temática.

Vamos sair desse dilema e procurar, com a experiência que acumulamos, colocar esse problema em nossa pauta prioritária.

Três Américas

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Diante das revelações que saem agora nos Estados Unidos, de que Trump queria acabar com a Constituição americana, com mais de duzentos anos de existência, e dar um golpe de Estado, vemos que a velha realidade do sonho de Monroe — da “América para os americanos” e de um continente integrado — desapareceu.

Na verdade, sempre existiram três Américas. Uma, a América do Norte, rica, saxônica, de onde saiu o grande país que dominava o mundo, liderando política e economicamente os países dos cinco continentes e disseminando as ideias de liberdade, dignidade das pessoas e direitos humanos. O México dela participava pela fronteira comum e pelos chicanos, os emigrantes mexicanos. A segunda seria América Central e Caribe, pobre, onde os Estados estavam sujeitos a instabilidade constante. Exemplo terrível da permanência desse passado vem do Haiti, com o assassinato do Presidente Jovenel Moise. A terceira, América do Sul, região mais pacífica da face da Terra, unida, com grandes riquezas naturais, mas sem estabilidade econômica, dominada de vez em quando por grupos militares e permanentemente em busca da democracia.

Sofrem uma crítica permanente os países onde existe uma desigualdade muito grande, com pobreza endêmica e, sobretudo, um anarcopopulismo, que mantém constantemente instabilidade institucional.

O Brasil e os demais países da América Latina muito sofreram com isso, sendo chamados de país de cucarachas ou repúblicas de bananas.

Com o desenvolvimento do mundo isso mudara para melhor. Por isso é estarrecido que hoje abro o jornal e vejo a manchete de que cúpula militar americana, no fim do governo Trump, evitou que o país assumisse a má fama do passado das três Américas. Os detalhes foram revelados agora por uma fonte insuspeita, o Chefe do Estado Maior Conjunto, General Mark Milley, num livro que foi editado agora — I Alone Can Fix It: Donald J. Trump Catastrophic Final Year [Só eu posso consertar isso: o catastrófico ano final de Donald J. Trump].

Quando houve a invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro deste ano, a 14 dias da transmissão de cargo do presidente americano, todos pensamos que fosse mais uma patuscada de Trump, dentre as muitas outras que fez. Foi um mal exemplo para o mundo inteiro que a maior democracia do mundo apresentasse cena daquela natureza, que marcava a história das Américas Central e do Sul, na constante busca de uma democracia sólida, capaz de assegurar um governo forte, fora da turbulência das antigas repúblicas das cucarachas e de bananas. Mas não era só isso e tinha uma profundidade maior: revela-se que Trump tentava realmente dar um golpe de Estado.

A internet trouxe uma mudança fantástica à humanidade. Primeiro, matou a verdade, não se sabe onde ela está. São tantas versões que não se sabe mais qual é a verdadeira. Deus quis que a resistência ao golpe não se tenha tornado uma fake news, porque, se os Estados Unidos estivessem vulneráveis, como queria o Trump, ninguém poderia dormir tranquilo.

Neste momento em que o mundo vive tantas crises, não podemos aceitar mais uma, tão danosa quanto a da Covid-19, a Covid da democracia. A primeira ameaça a vida, e a segunda, a liberdade.

Valha-nos Deus.

Eleição e Representação

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Falei, na semana passada, que precisamos de duas reformas urgentes: a do sistema de governo, adotando o parlamentarismo, e a do sistema eleitoral.

Eleição significa representação. Desde a Revolução Francesa acabou-se com a ideia de que grupos podiam designar pessoas para transmitir uma reivindicação — o chamado voto imperativo — e passou-se a eleger quem representa os cidadãos. É o ato de votar que afirma a cidadania no Estado democrático.

A grande dificuldade é fazer com que o representante represente de verdade o povo. Cabe ao sistema eleitoral garantir isso, enfrentar as fragilidades de como eleger, de como estabelecer uma relação de confiança entre o eleitor e o eleito. Este precisa enfrentar a volatilidade da opinião pública, estimulada pela mídia que — legitimamente — contesta governantes e parlamentares.

O que se busca com as regras do voto é resolver esse problema. O partido político moderno surgiu para viabilizar programas que possam responder ao desejo do eleitor. Ele precisa, desde logo, transpor para si as regras da democracia, de que a maioria decide respeitando e ouvindo a minoria. Não há lugar para “donos” de partido, para dirigentes partidários que não tenham se submetido à escolha dos membros. E, estabelecido pelo voto interno um programa, a vocação do partido é implementá-lo.

Assim organizados, legitimados pelo voto, eles podem ser fortes. Sem partidos fortes, não há parlamento forte, não há governo estável. Mas para que eles tenham força é fundamental que haja eleições capazes de viabilizá-los. Não é o que temos no Brasil.

Temos um sistema — o do voto proporcional uninominal — em que se vota em pessoas e não em partidos. Os candidatos disputam dentro do próprio partido, saem da eleição inimigos e perdem qualquer noção de fidelidade. Esse sistema é o responsável pela proliferação de partidos no Brasil, pela bagunça partidária e pela vulnerabilidade das eleições ao poder econômico e às práticas heterodoxas de angariar votos. É responsável pela fragilidade das instituições, do Poder Legislativo e do Poder Executivo.

Com o voto proporcional uninominal, com a multidão de partidos frágeis que temos, a democracia descamba para a demagogia e para a política pessoal, com todos os descaminhos que levam à decomposição dos costumes políticos. O atual sistema eleitoral partidário chegou ao fim – e é com tristeza que podemos reconhecer que apodreceu. Não pode sobreviver. Não temos o direito de deixar que sobreviva.

A solução — apresentei isto há quase cinquenta anos — é o voto distrital misto. Em meu último mandado propus a fórmula que institui um único voto na eleição de parlamentar, no distrito, voto esse que repercutirá na definição da quantidade de eleitos pela lista partidária. Assim a adoção do sistema distrital misto não complica o voto do eleitor, o que ocorreria com a adoção da tese dos dois votos, um no distrito, outro na lista, permitindo que a Câmara dos Deputados seja composta por parlamentares com dois tipos de legitimidade, a geográfica, derivada dos distritos, e a partidária, decorrente da eleição na lista partidária.

Reforma, ainda que tardia! Vamos construir o parlamentarismo, implantar o voto distrital misto, alcançar a democracia.

A Reforma sem forma

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Não há palavra mais usada e gasta no vocabulário político do que reforma. Quando as coisas precisam mudar e parecem gastas, o caminho a que se lança mão é o apelo a reforma. Vem do Império o primeiro chamado forte a ela, para conjurar a República que já surgia. E veio do conselheiro Nabuco de Araújo, conservador que se tornou liberal e bradou, num momento de grandes dificuldades: “OU REFORMA OU REVOLUÇÃO!”.

Dizia que se não se fizesse uma grande reforma no sistema político, inevitavelmente viria a revolução. E aos trancos e barrancos fomos avançando em reformas parciais, a mais profunda delas a reforma eleitoral do Conselheiro Saraiva, que criou o voto direto.

Passei 51 anos no Congresso, deputado federal e senador, e tornei-me o político que mais tempo passou no Senado Federal. Em todos estes anos, não se passou uma só legislatura sem que houvesse uma reforma salvadora para ser votada — e nunca uma sequer foi completamente aprovada.

A mais ruidosa que presenciei não era uma reforma, mas um cacho delas, que o Governo João Goulart propôs sem que se soubesse exatamente o que era em seu conjunto, e cuja síntese, consolidada no famoso Comício das Reformas de 13 de março de 1964, de que até o ministro do Exército participou e no qual o presidente da República pronunciou um discurso violento, que precipitou outros atos pelo reformismo — como o dos Cabos e o dos Marinheiros —, o fez vítima da manifestação militar que nos levou a um regime autoritário que durou 20 anos.

Estas considerações que faço é para dizer que a mais necessária e urgente de todas as reformas é a política, que perdeu a oportunidade de ser feita na Constituição de 1988 e não foi construída até hoje. Assim, entramos num regime híbrido, parlamentarista e presidencialista, que, não se sustentando nas pernas, partiu para o chamado “presidencialismo de coalizão”, que é apenas uma real politics, em que o governo vive na corda bamba, fazendo concessões e criando instabilidade. O resultado são governos em que se vive de ameaças de impeachment contra o presidente e contra os ministros da Corte Suprema, e qualquer marola, a ser resolvida pelos partidos, pode bater num processo de impedimento.

Não há país que possa conviver com esse modo de governar. Precisamos ter a coragem de partir para o parlamentarismo, em que as crises derrubam os Gabinetes, mas não abalam a República.

Assim vivemos entre o dilema do tempo da capital no Rio de Janeiro — “a Vila Militar vai descer!” ou “Golpe!” — ou o de agora — o impeachment e os problemas militares. Isso não pode continuar. Assim a reforma urgente que temos que fazer é tornar o País governável.

As opções são a reforma política para valer, saindo do presidencialismo de coalizão, adotando um regime parlamentarista ou semipresidencialista e, para acabar com a multidão de partidos, o voto distrital misto — ou continuar vivendo de emendas constitucionais e medidas provisórias em pleno terremoto político.

A Quarentena e o Estado

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Mais uma vez, esta semana, o Brasil proibiu a entrada de estrangeiros por via terrestre ou aquática. Curiosamente não proibiu o acesso por via aérea. Essa tentativa de impor barreiras físicas faz parte da rotina em todo o mundo desde o desenrolar da pandemia de Covid-19.

Não é a primeira vez que se impõem restrições em razão de uma doença. Já o Levítico mandava isolar os leprosos. Avicena, o grande sábio que revelou Aristóteles para o Ocidente, recomendava a separação dos doentes com doenças transmissíveis. E na transição entre Idade Média e Renascimento surgiu na língua vêneta a palavra quarentena, que, escrita como em português, marcava os quarenta dias de isolamento necessários a quem quisesse entrar na Sereníssima República, tentando assim barrar as pragas de peste.

A partir daí o sistema se generalizou, sobretudo nas fronteiras marítimas, sem evitar completamente os surtos — na gripe espanhola morreram 50 milhões de pessoas. Com a explosão das viagens aéreas as coisas se complicaram, porque a doença dá a volta ao mundo antes de ser identificada e cria focos de contágio aqui, ali e acolá. Foram geradas muitas convenções multilaterais, até se chegar à adoção de regras internacionais — os Princípios de Siracusa — pela ONU.

Com a Covid foi, e é, comum a restrição ao fluxo de pessoas. Hoje mesmo nós, brasileiros, não podemos entrar em muitos países, pelo péssimo juízo que se faz de nossos controles e de nosso combate à pandemia.

A falta de uniformidade nas medidas de isolamento mostra dois grandes problemas: o primeiro, o do progressivo enfraquecimento do sistema das Nações Unidas, devido em parte ao boicote das três maiores potências no Conselho de Segurança. Esse é um problema que a humanidade tem que resolver, pois precisamos de mais autoridade coletiva, não de menos, sobretudo para agirmos contra as desigualdades.

O segundo aspecto é a erosão sistemática do Estado democrático que, sob o pretexto de criar um Estado mínimo, tem sido levado rapidamente para o autoritarismo e o populismo que tanto mal causam, como com Hitler, Mussolini, Stalin, Hirohito e tantos outros monstros. Mesmo os regimes em que a democracia resiste sofrem enorme perda em sua capacidade de agir, com governos desprestigiados. Não podemos ignorar a relação entre a crise do Estado e os danos provocados pela doença. Assim aconteceu com a Itália e a Espanha, que não têm conseguido estabilidade para seus governos; com a Inglaterra, onde o Brexit dividiu a população e assumiu a figura exótica de Johnson; com a França, onde Macron não consegue convencer; com os Estados Unidos, no tempo do inqualificável Trump; e em vários países da América Latina — sem falar dos lugares onde só há um fio de democracia, como a Hungria.

Precisamos resistir a esses ataques e restaurar as bases do Estado democrático e da solidariedade internacional.

O cansaço da solidão

por Jorge Aragão

Por José Sarney

O mundo começa a se recuperar, com alívio, de um dos maiores problemas da pandemia: o cansaço da solidão, o desgaste psicológico do isolamento. Infelizmente, aqui no Brasil, ainda vamos continuar nessa provação de ficar longe da família, dos amigos, dos companheiros de trabalho, de toda a sociedade.

Há um ano, ainda no espanto com as dimensões da doença, eu lamentava o meio milhão de mortos no mundo. Hoje esse é o número no Brasil. Há mais de um milhão de pessoas em tratamento, as UTIs estão cheias, e os dezesseis milhões que já tiveram a doença ainda sofrem com ela.

Logo no começo da pandemia se pensava na dificuldade de conseguir a vacina, imaginando que logo estaríamos livres da quarentena. A vacina veio mais rápido do que o previsto, mas, como não seguimos os cientistas, ainda temos que repetir: “A única solução é evitar o contágio, com o isolamento, e, fora dele, com o uso de máscaras por todas as pessoas.”

Ao longo desse isolamento tenho escrito sobre solidão. Falei de como esse sentimento vinha misturado com medo, crescendo dentro de nós a falta dos amigos e de como não fomos feitos para isso.

Quando surgimos como espécie distinta entre os hominídeos, já éramos há muitos milhões de anos animais sociais. Cada vez mais fomos contando uns com os outros, enriquecidos pelo sentimento de solidariedade e colaboração. Juntos ficamos fortes para caçar e competentes para cultivar. Assim pudemos começar a construir habitações e com elas fazer cidades. Mais ainda, foi por e para podermos colaborar que desenvolvemos linguagens, seja numa mutação, como crê Chomsky, seja aos poucos, como na hipótese do altruísmo recíproco, que aliás se baseia na necessidade de honestidade — isto é, nada de mentira ou fake news.

Na sociedade em que nos juntamos para sobreviver, há os que se isolam, em um espiritualismo intenso. O cristianismo está povoado de eremitas e anacoretas, de São Jerônimo a Charles de Foucauld, mas Lao Zi, fundador do taoísmo, o fizera muito antes.

Mas o comum dos mortais, como nós, não sabe viver em isolamento. Por mais que professemos, como faço e pratico, o nosso amor pelo livro — ou pela música, pelos jogos solitários ou o que seja —, há o momento em que precisamos de ter o contato direto com outras pessoas, com outras almas.

Já lamentava o poeta: “Alma minha gentil, que te partiste … E viva eu cá na terra sempre triste.” Vivemos tristes o tempo todo, pois são tantos os amigos que partiram e mais ainda os amigos que não vemos, com quem não estamos, que corremos o risco de nos amofinar no desencanto do viver.

Mas temos que sacudir esse sentimento. Vencer a doença tem que ser nossa prioridade, nem pensar em sermos por ela derrotados. Sem esquecer as que ficaram pelo caminho, em nome de cada uma e de todas as quinhentas mil vítimas, temos que lutar para sobreviver, e sobreviver formando uma sociedade mais justa, em que a língua sirva para dizer a verdade e para construir a justiça social.

Estamos cansados, cansados de solidão, mas ainda temos fé. E fazendo o que sempre aconselho — vacina, máscara, isolamento —, vamos acabar com a solidão e o com o cansaço.

A grande heroína

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Todos elogiam e tiram o chapéu à liberdade de imprensa. Muitas vezes é um gesto repetitivo para agradar àquela que faz ou desfaz a opinião pública, outras vezes é medo de desafiá-la, mesmo que seja desafiar a verdade.

Mas qualquer que seja a motivação, tudo será pouco no elogio ao trabalho desenvolvido pela mídia nos tempos trágicos que estamos vivendo da atual Pandemia. A Primeira Emenda da Constituição Americana, que faz parte das dez emendas do Bill of Rights, garante as liberdades individuais: de religião, opinião, imprensa, reunião, petição. Jefferson, que estava na França durante a elaboração da Constituição, desejava que a declaração de direitos fosse incluída na Carta, mas seu grande amigo Madison não quis colocá-la no texto definido pela Convenção de Filadélfia. Na ratificação, Madison viu que era necessário que fizesse parte formal da Carta e conduziu a aprovação das emendas que completaram a genial construção jurídica da Constituição.

Graças à mídia, consolidada como instituição livre, foi possível ter êxito no tratamento da Pandemia, que envolveu a divulgação de aspectos científicos, políticos, econômicos e a disseminação dos comportamentos efetivos para combatê-la.

Quando surgiu a Pandemia nada existia que pudesse contê-la. Os instrumentos de que nos socorremos foram os clássicos, que eram a única defesa contra essa tragédia que estamos vivendo, e com os quais durante muito tempo ainda temos que conviver: lavar as mãos, usar máscaras e evitar aglomerações, onde é mais fácil disseminar o vírus assassino que chegava. Nada se sabia sobre a doença. Nenhum remédio por descobrir ou descoberto para outras doenças que pudesse nos salvar.

Dois setores da sociedade nos socorreram: primeiro, nunca tínhamos testemunhado a união de todos os cientistas do mundo, que, num trabalho gigantesco, desenvolveram em prazo curtíssimo as vacinas que começaram a surgir em muitos países, saindo à frente os países ricos, onde existiam maiores e melhores recursos humanos.

O outro setor foi o da imprensa, com seus instrumentos atuais e sua globalização, a informar, difundir orientações e bombardear, nas 24 horas do dia, a melhor maneira de conduzir-se para fugir da morte. Para isso, durante todo o tempo, muitos profissionais se expuseram heroicamente e até perderam a vida no necessário combate às fakes news, às mentiras e às descrenças que ameaçam a humanidade. Destruir charlatões, falsos profetas e impor a ciência como única maneira de se salvar.

Sem informação, sem consciência da gravidade da situação, do perigo, dos males seria impossível enfrentar a Covid.

O Brasil teve dilemas e falsidades que tiveram de ser desfeitos e, mesmo assim, sem o trabalho heroico, a dedicação, a honestidade e o idealismo dos seus profissionais não teríamos nem os resultados débeis que apresentamos com nossos quinhentos mil mortos e a saudade, a dor e a destruição das muitas famílias, que perderam pais, mães, filhos e amigos.

Aos nossos profissionais da mídia — todas elas — somos devedores desse heroísmo com que cumprem com glória o dever profissional.