Eleições lá e cá

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Estamos na boca de uma nova eleição, a eleição municipal, que, embora seja a mais importante, não desperta a mesma paixão da de governador.

Agora uma eleição diferente, feita sem campanha, sem comício, sem reunião com grande número de pessoas e todas e todos com medo do coronavírus. As novas tecnologias deslocaram a comunicação para as redes sociais, através da parafernália de whatsapp, facebook, instagram e hackers, que estão a postos para invadir os computadores. E as fantasmagóricas e destruidoras fake news, que sem fronteiras ocupam as campanhas espalhando mentiras, infâmias e difamações, sem tempo para que sejam desmentidas e criando um estrago danado.

Mais perto do que as nossas está outra muito maior e que atinge o mundo inteiro, pois envolve a escolha do presidente do mais poderoso país da Terra. Juracy Magalhães, um grande político baiano, dizia que, “quando os Estados Unidos espirravam, nós já estávamos com pneumonia”. Ele era tão americanista que dizia que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

Agora então a situação é mais delicada. Nunca estivemos tão alinhados com eles como hoje, pendurados numa amizade pessoal do presidente Trump com o presidente Bolsonaro e na confluência de ideias entre o governo de cá e de lá. Dessa eleição dependem muito os próximos anos do Brasil, bem como do mundo. O enfrentamento com a China, as relações tensas com a Europa e as ideias do Trump sobre meio ambiente fizeram os EUA romperem com o Acordo de Paris sobre o clima.

A eleição municipal nossa não mexe em nada disso. Os resultados de Rio Preto, Bom Jesus da Selva ou Duque Bacelar não vão influenciar na corrida nuclear nem na produção de vacinas russas, chinesas ou americanas.

Mas dizem do destino das populações mais pobres e mais vulneráveis, e para a Humanidade o que pesa é o bem-estar das pessoas, sua qualidade de vida e sua perspectiva de futuro.

O nosso sistema político republicano, conceitualmente formulado por Rui Barbosa, foi delineado na Constituição de 1891, redigida por ele, baseada na americana, que lá é sagrada, enquanto a daqui já foi substituída várias vezes.

Só que aqui tivemos que superar as eleições a bico de pena, a fraude generalizada, e lá eles pensaram que tinham resolvido isso com os checks and balances. Pois agora o Trump anuncia que não vai aceitar o resultado se for contra ele, porque onde o Biden pode ganhar vai ser fraudada. É que com a pandemia do corona, para evitar aglomerações, os democratas estão incentivando o voto pelos correios, que para Trump não é confiável e cujo atraso já deu a vitória – fraudada – ao Bush. A fraude, que no Brasil ameaçou a democracia, agora, cem anos depois, ameaça a maior democracia do mundo.

E assim Nova Iorque do Maranhão pode ser comparada à Nova York dos Estados Unidos. Mas a nossa não tem ameaça de fraude. Só traduzindo, como dizia o padre Newton, a expressão de Cícero “o tempora, o mores!”, como “o tempo das amoras”.

O mestre Kleber Moreira

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Meu companheiro do jornal O Imparcial e meu professor na Faculdade de Direito, Fernando Perdigão, grande talento e advogado, disse-me um dia que envelhecer era chegar ao cemitério, percorrer as alamedas, ler as lápides e verificar que quase todos os nomes que ali repousam foram contemporâneos, amigos ou conhecidos na paisagem da cidade.

Jorge Amado disse-me que, ao encontrar-se com Pablo Neruda, futuro Prêmio Nobel de Literatura, seu amigo do tempo de exílio, começou a perguntar por amigos da vida inteira e ouviu como resposta: “Jorge, não me perguntes por ninguém. Todos já morreram.”

Este é um dos desgostos de envelhecer: o sofrimento da perda dos amigos, pesando mais aqueles que nos foram mais próximos, de maior convivência. E eu disse, num dos 122 livros que escrevi, que “a palavra felicidade tem como sinônimo a infância”, quando começam as grandes amizades, que são a melhor coisa da vida. Dentro dela estão o amor, a ternura, a estima, a solidariedade, o gosto da convivência, o perdão e a fé. Daí o provérbio universal “quem tem um amigo tem duas almas”.

Estou na fase dolorosa e sofrida de constantemente sentir escorrerem lágrimas e chorar com a garganta pela perda de velhos amigos.

Foi com a alma em frangalhos que acompanhei a morte de Kleber Moreira. Só um ano a mais me separava dele, mas me amarravam a irmandade da alma desde os tempos do ginasial, passando pela política estudantil, pelas rusgas afetuosas que só faziam consolidar esse relacionamento.

Gostava de contar histórias e conhecia como ninguém as pessoas e a vida cotidiana do Maranhão. Ultimamente vivíamos horas e horas revisando histórias passadas.

As marcas maiores de sua personalidade eram o seu caráter, a sua correção, a sua franqueza, a sua obsessão pela precisão dos detalhes e pela integridade dos episódios.

Culto, estudioso, detalhista, conhecia como ninguém a ciência do direito, a jurisprudência e a missão do advogado. Não conhecia o lado da exaltação nem o da chicana. Seguia os ensinamentos de Rui Barbosa sobre a conduta profissional: “Não fazer da banca balcão ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis.” Ganhou prestígio, respeito de sua classe, reverência da sociedade e era considerado um dos grandes advogados do Brasil.

Junto em minha dor a da perda de tantos outros amigos, Milson Coutinho, grande historiador, extraordinária figura humana; Sálvio Dino, companheiro de tantas lutas; José Maria Cabral Marques, um dos maiores educadores do Maranhão, meu colaborador e construtor da equipe do Maranhão Novo; e Waldemiro Viana, intelectual consagrado, confrade ilustre e filho do grande poeta Fernando Viana.

A todas as famílias a minha solidariedade neste momento de tristeza. E que Kleber Moreira leve para a eternidade a certeza de minha eterna saudade e da falta que ele vai fazer com sua sabedoria, seus conselhos e seus exemplos. Com tantos talentos perdidos o Maranhão está menor, deixando no mármore da imortalidade aqueles que constroem nossa glória.

Menina e moça

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Tomei emprestado para este artigo o título do livro de Bernardim Ribeiro, que na minha adolescência fazia parte da formação clássica. É velho como a Sé de Braga, como se diz em Portugal, de 1554. Começa — cito de memória e me sujeito a erros — assim: “Menina e moça me levaram da casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube.”

Lembro isso pelo caso que nos revoltou pela violência e pela maldade: a gravidez da menina de dez anos, violentada desde os seis, no Espírito Santo. Não entra em nosso entendimento, neste conjunto de valores que Deus nos deu, que se possa aceitar isso. É o mundo louco que a cada dia se revela. Certamente minha avó diria “é o fim do mundo”.

Essa monstruosidade revoltou o Brasil, nosso povo, independentemente da formação religiosa, independente da controvertida posição sobre o aborto. É uma brutal atrocidade que nos choca a começar pela monstruosidade corporal. Uma criança pura de sentimentos, sem saber o que é sexo e cujo corpo não está fisiologicamente apto para o ato sexual.

 O nosso sistema jurídico só permite o casamento a partir dos 16 anos, assim mesmo com o consentimento dos pais, pois a idade legal de casar é 18 anos. Com menos de 16 só em caso de gravidez. É verdade que a realidade é bem outra. Estamos em 4º lugar em casamentos de crianças de até 15 anos, precedidos pela Índia, Bangladesh e Nigéria. E pasmem: no Brasil o Estado onde é primeiro é o Maranhão.

Uma vez ouvi em Bacabal de um chefe político a história de um fazendeiro que tinha a fama de comprar virgindade, quase sempre de mocinhas pobres. Fiquei chocado, mas atribuí a informação em parte a essas infâmias que, no interior, colam nos adversários políticos para desqualificá-los e destruí-los.

Verdade é que essa menina ficará como um caso ultrajante na história dos nossos costumes. Pensar numa menina grávida aos dez anos, violentada pelo tio, e no martírio da violação desde os seis anos de idade, cria indignação e revolta.

É que o ato sexual não envolve só o contato corporal, mas uma gama de sentimentos contraditórios que vão desde o amor até à vivência das relações pessoais, do afeto até a devassidão e o ultraje, para os quais as pessoas têm de ter a faculdade de reação. Envolve a pureza e o carinho de estar junto. Foi o Criador, segundo o Gênesis, que melhor o definiu dizendo que “serão dois em um”.

A inocência, esse aspecto de fragilidade e ternura que envolve a meninice, nos leva a ter a infância como uma fonte sublime e pura da existência humana. Ela se revela na alegria da graça da vida, num tempo que forma nossas referências e fica como memória. Mas esse período ficará para essa menina como apenas o horror desse bárbaro episódio.

A menina não perdeu somente a virgindade e inocência. Perdeu o nome, perdeu a identidade, tem que ser outra para ser a mesma.

Como viverá daqui para frente? Como apagará essa indelével mancha?

O livro e os ricos

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Sempre tive a cultura como minha causa parlamentar. As leis de incentivo à cultura, estímulo à pesquisa científica, proteção do patrimônio histórico foram iniciativas minhas, que têm quase cinquenta anos. E, Presidente da República, criei o Ministério da Cultura. A cultura vale por si mesma, mas lembro que não há potência econômica que não seja antes potência cultural.

Uma vez escrevi uma frase que pressupunha um absurdo: “Se, por uma desgraça, essa história de mercado um dia tornar o livro dispensável, ainda restará o livro de poesia, pois a poesia não precisa de mercado e salvará o livro.” Pois não é que agora, em nome do mercado, o governo quer acabar com o livro? Parece deixar de saber das imensas dificuldades por que estão passando editoras e livrarias e, apesar disso, pretende tornar o livro mais caro, isto é, inviável. Segundo seus porta-vozes, livro é coisa de rico, e para os pobres dará livros de graça (!).

A Constituição veda a cobrança de impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”. Para driblar as restrições constitucionais à cobrança de impostos, usam sinônimos e chamam de contribuição ou taxa. E tome taxa absurda. Em 2003, consegui aprovar uma lei instituindo a Política Nacional do Livro e nela estender a imunidade tributária do livro às taxas. Lula vetou o artigo, mas assumiu o compromisso de contornar o problema e cumpriu o prometido. No ano seguinte, anunciou a desoneração de todas as contribuições e taxas para o livro nacional e o estrangeiro.

Agora, na reforma tributária, o governo está atrás de receitas. A carga tributária, que deixei em 24% do PIB, já passou dos 35%, e o Ministro da Economia quer mais. Acha bom tirar do livro para salvar o País! Pretexto: “Livro não é importante para o povo.” Eles nunca devem ter ido a uma feira de livros, cheia de povo jovem e povo povo e povo de todo jeito.

O livro é um bem de consumo essencial. É um dado histórico. Com a invenção de Gutemberg, explodiu a produção de livros. Foram eles os responsáveis pela expansão das universidades e da educação, pela fixação de línguas, pelos Descobrimentos, pelo Renascimento, pela pesquisa científica, pelas revoluções políticas — entre elas a criação do Estado e da democracia representativa.

O livro nunca acabará, porque ele é a maior das descobertas tecnológicas: cai e não quebra, não precisa de energia, de ligar e desligar. Pode ser levado para qualquer lugar, banheiro ou cama. O livro é o melhor amigo. O livro tem tudo, da poesia à informática, passando pelos livros de economia, inclusive os que o Ministro disse que leu em inglês, no original. O Bill Gates, criador da Microsoft, disse sobre o livro que a internet só existe porque os que a criaram passaram pelo livro.

Recordo um refrão que, se não me falha a memória, está no Dom Quixote: “Os livros fazem muitos sábios, mas poucos ricos.” Com a reforma haverá ricos sábios ou sábios ricos?

A aprendizagem do Congresso

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Passei 51 anos no Congresso, exercendo mandatos, cinco de senador e três de deputado federal, dois deles eleito como o mais votado da oposição do Estado e um como suplente que assumiu o exercício do cargo várias vezes. Como político militante chego dos 14 anos até hoje, quando comecei como militante da juventude brigadeirista, portanto 76 anos. Assim, toda a minha vida foi dedicada à política, o que me faz o mais longevo político da história da República.

E na política foi o Parlamento a minha Casa de formação, onde aprendi a exercitar minha vocação de conciliador, meu respeito pela opinião dos outros e minha vivência do exercício e da prática da democracia. Cheguei a conceituar “de experiência feita”, no ensinamento de Camões, o Parlamento como “o coração da democracia”.

Já no final dos meus mandatos cheguei mesmo a descobrir que lá é um lugar que tem mais uma grande lição, ser melhor para ouvir do que falar, embora 70% da ação política seja a palavra. Saber ouvir, nos ensinava o Padre Vieira; e afirmava que o Espírito Santo tinha espinhos nos ouvidos para que as coisas não entrassem direto, ficassem espetadas para esperar meditação. Isto só o longo tempo faz descobrir.

Mas esta conversa fiada toda começou para dizer que nunca, durante este tempo de Parlamento, passou qualquer instante em que se falasse em reforma tributária — assunto permanente e cativo no Congresso — e que fosse de maneira consensual. Sempre o assunto despertou debates e divergências radicais e apaixonantes, sobretudo por envolver interesses irreconciliáveis: dividir dinheiro entre União, Estados e Municípios, além de corporativismos e oportunidades atrativas de pegar melhor pedaço.

Lembro isso porque vivi — uma parte como presidente do Senado e outra como simples senador — a guerra para criar a CPMF, chamado na origem imposto sobre cheque. A motivação era mais que nobre, dinheiro para saúde sempre à míngua. A primeira resistência veio dos bancos, reação violenta que, se não estou traído pela memória, a que já tenho direito, foi até ao STF. Tinha como aval e idealizador o Professor Adib Jatene, cientista consagrado, austero, respeitado e ouvido, que se tornou arauto da causa e peregrino desses recursos que iriam salvar a saúde. Sob seu prestígio e sua proteção ninguém recusava apoio. Passou. Dinheiro exclusivamente para saúde.

Seu amigo e devoto, dele ouvi quando resolveu abandonar o Ministério da Saúde que estava decepcionado. O dinheiro da CPMF da saúde tinha sido desviado pra pagar juros da dívida!… A decepção não era só dele. Era de todos nós que o tínhamos acompanhado. A Saúde ficou chupando pirulito.

Portanto são justos o pé atrás e a desconfiança de que se pretenda, sob qualquer motivação e qualquer nome, passar a perna de novo no Parlamento e até no Presidente, que proclamou ser contra.

O deputado e excelente Presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que com tanto brilho tem desempenhado suas funções, tem formulado muito bem, e prudentemente, a sensata posição de não aceitar que o País seja passado para trás.

O SUDS e o SUS

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Está sendo lançado Saúde no Brasil – Provocações e Reflexões, livro da maior importância para o país. Embora reunindo textos escritos ao longo de vários anos, e José Aristodemo Pinotti, seu autor, tenha falecido há dez anos, a reação do Brasil à pandemia enfatiza a necessidade de que todos os responsáveis pela Saúde o leiam e reflitam sobre sua mensagem.

Um aspecto essencial é sermos um país com um sistema de atendimento universal à saúde – o único com mais de cem milhões de habitantes. Sem ele nem podemos imaginar a escala – já desmesurada – que teria entre nós a catástrofe da Covid19. Os pobres sabem que sua única esperança, nessa hora, é o SUS.

O SUS não nasceu com esse nome. Chamava-se SUDS. Fora uma sugestão cristalizada na 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Fui aconselhado a não comparecer, pois seria “de esquerda” – era presidida pelo Sérgio Arouca, da Fiocruz, filiado ao PCB -, mas não só compareci, acompanhado dos ministros Rafael de Almeida Magalhães e Roberto Santos, como determinei que suas conclusões fossem observadas. Daí surgiram as normas que criaram os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde, implementados por meio de convênios com o governo federal.

Pinotti era Secretário da Saúde de São Paulo e criou Sistemas Locais de Saúde em todo o Estado. Com o conhecimento do grande médico que foi um dos heróis da saúde pública no país – além de constituinte e reitor da Unicamp – Pinotti mostra como o SUDS virou SUS na Constituição e depois de meu governo o ter implantado passou por um período de desmonte, de que nunca se recuperou. Seu livro revela alguns dos aspectos mais críticos da política brasileira de saúde pública – aliás, da ausência de uma Política de Estado de Saúde Pública.

Uma vez lembrei aqui a apropriação de minhas iniciativas, citando o conto de Erasmo Dias, O roubo dos personagens. Começa pela lei de incentivos fiscais à cultura, a Lei Sarney, que acabaram para recriar como Lei Rouanet. Fui eu quem, no manifesto da Bossa Nova da UDN, falou pela primeira vez em “desenvolvimento com justiça social”. Fui também pioneiro em propor cotas raciais, o Programa do Leite, o Vale-Transporte e por aí iríamos longe.

Rafael de Almeida Magalhães algum tempo antes de falecer me escreveu uma carta lembrando o caso do SUS, a equiparação dos direitos previdenciários do trabalhador rural ao urbano, o benefício de prestação continuada – renda mensal vitalícia a idosos, incapacitados e deficientes, que é dada 4,8 milhões de pessoas e no valor de 29 bilhões. E lembro ainda a lei de distribuição gratuita do coquetel contra a Aids, levada pela ONU a vários países por todo o mundo.

O dr. Dráuzio Varella diz que o SUS é “a maior revolução da história da medicina brasileira” e que “sem o SUS é a barbárie”. É com a autoridade de seu criador que fico chocado com a notícia de que a taxa de cura da Covid é 50% maior na rede privada. É um indicador da desigualdade social incompatível com o espírito que criou o SUS e com os próprios princípios básicos do Estado brasileiro.

Salvemos o SUS! O dr. Pinotti dá o caminho.

O corona e a muriçoca

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Quando Mário Meireles, o grande historiador maranhense, que deixou uma lacuna impreenchível, morreu, uma filha sua comentou: “Meu pai, que resistiu a tantas doenças e tantos obstáculos, foi morto por um mosquito.” Ele tinha falecido de dengue.

Agora, as grandes potências, que desenvolveram arsenais de armas de destruição, treinaram milhões de homens para destruir e conquistar, criaram indústrias dedicadas a fazer armas cada vez mais mortíferas, usaram por tantos anos tantos cientistas para desintegrar o átomo e construir armas que ameaçam a destruição da Humanidade, de repente se deparam com um competidor na capacidade de matar e destruir.

É um micro-organismo tão pequeno que o cientista precisa de um microscópio eletrônico que aumente um milhão de vezes sua imagem, e assim possa ver suas coroas e estudar seu poder destruidor, que ainda não foi completamente revelado: só mostrou que é capaz de matar mais de meio milhão de seres humanos, infectar treze milhões, desmontar a economia mundial, criar centenas de milhões de desempregados, espalhar a fome, disseminar o desmonte dos sistemas de comércio, abalar a economia, provocar uma matança de empresas, atingindo brutalmente os mais pobres e ameaçando o sono dos ricos.

Um simples – ou melhor, altamente complexo – nanométrico vírus. Um ser que talvez não seja vivo, mas nada tem de morto, pois vive de mudar e se reproduzir. Entre uma célula que explora e outra, é um ácido nucleico com algumas proteínas; nas células, parasitas de seus cromossomos.

Toda ciência mundial está mobilizada contra o SARS-CoV-2 e contra a Covid-19, os grandes cientistas disputando para ver quem chega primeiro na corrida para produzir a vacina – ao que tudo indica, desistiram de produzir um remédio que destrua o vírus.

Esse exemplo da pequenez da arrogância do poder não seria a oportunidade do homem se impregnar pelo sentimento e pela consciência da solidariedade? Pensar que, se com a Terra ninguém acaba, as cidades e as maravilhas que o homem construiu de nada adiantam, porque o que está ameaçado é o gênero humano, que pode desaparecer vítima das doenças desconhecidas, mal conhecidas e bem conhecidas que estão sempre nos atacando. Paralisia infantil, varíola, malária, gripe espanhola, tifo, tuberculose, pneumonia, Aids – até hoje sem uma cura definitiva -, ebola, cólera, H1N1, Covid, com as mutações e estratégias de vírus e bactérias trazendo doenças pelos milhares de séculos que ainda virão pela frente. De nada servem as bombas nucleares, as armas letais de toda natureza, contra elas.

Por que não procurar construir um mundo de justiça social, pacífico, em vez de acumular riqueza e construir tanques, portaaviões, foguetes e tudo mais que representa hegemonia e poder?

Por que não banir a fome, criar uma sociedade menos egoísta e mais voltada para as coisas do espírito, um mundo de paz? Se Deus nos deu a graça da vida e o livre arbítrio, não podemos, em vez de utilizar e completar a obra do Criador, caminhar para o suicídio coletivo da Humanidade. Que esse vírus crie a consciência de um homem novo, que ame ao próximo como a si mesmo.

A força do saber

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Quando recebi o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Pequim, resolvi falar sobre o tema do saber, defendendo a tese de que todo conhecimento humano era resultado de longo processo de acumulação de saberes que vinha desde o homem da pedra lascada até as descobertas que nos fascinam, como conhecer a estrutura do Coronavírus SARS-CoV-2. O vírus tem de 50 a 200 nanómetros (0,0000002 m) e precisa de microscópio eletrônico capaz de aumento de cem mil a um milhão de vezes para ser estudado.

Esse “invisível” organismo, é, contudo, capaz de afetar o gênero humano mais do que qualquer bomba atômica existente ou que venha ainda a ser descoberta (já matou 10 vezes mais que a bomba de Hiroshima).

Pois dizia eu que, sendo assim, o saber era um patrimônio da História do homem e, como tal, não devia ser objeto de comércio. Agora, sou obrigado a rever meus argumentos, sem abandonar seus fundamentos. Essa corrida em busca da descoberta da vacina e de medicamentos de cura teria acontecido se não fossem o capitalismo e a ganância do lucro? Com a divisão do mundo em busca de poder, de hegemonia, de domínio talvez tivesse sido impossível haver coordenação de forças para o mais rápido possível chegar-se à descoberta da vacina e da cura da Covid-19. Resta saber como será a disputa pela distribuição, se será igualitária, se atingirá a todos, pobres e ricos.

Sabemos que a difusão da penicilina, descoberta em 1928 por Fleming, mas que lentamente passava do conhecimento científico para o uso, só aconteceu por causa da 2ª Guerra Mundial, com o War Production Board. Será o capitalismo mais eficiente? A Organização Mundial de Saúde – OMS sairá fortificada ou será destruída pelas ambições de alguns chefes de estado?

De qualquer forma, o futuro da Humanidade não será de países grandes ou pequenos, mas daqueles que dominem tecnologia e ciência. Os outros estão condenados à colonização cultural e econômica para ter acesso aos benefícios das descobertas – e sofrerão as consequências.

Essas reflexões me ocorrem na disputa da vacina, cujos reflexos transbordam até para o Brasil. Os laboratórios nacionais entram nessa corrida, comprando parcerias e investindo até mesmo no escuro sem saber se terão êxito ou não.

Mas até aí o conhecimento influi. Isso só é possível porque temos duas instituições públicas de excelência, reconhecidas mundialmente na área de pesquisa: o Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e o Butantã em São Paulo. Um ligado à pesquisa de vacina de Oxford, na Inglaterra; o outro, à pesquisa chinesa, já na fase três, isto é já sendo testada em humanos, fase essa a ser aplicada no Brasil a partir do dia 20 deste mês.

Agora, com imensa contestação no meio científico, surge a Índia anunciando que uma vacina, que eles chamaram Covaxin, desenvolvida em tempo recorde e já sendo testada em humanos, deverá estar disponível para ser aplicada a 15 de agosto. Esse anúncio provocou esperanças e expectativas. Que seja exitosa é o desejo mundial.

Outro anúncio de revolução tecnológica foi o de um filtro de espuma de níquel aquecida que destruiria – se, como se pensa agora, o vírus se espalhar também em aerossol – quase 100% do Coronavírus em suspensão, ao ser usado por aparelhos de ar condicionado em ambiente fechado: aviões, navios de turismo, ônibus etc.

Estamos mais uma vez nas mãos dos cientistas, graças a Deus.

Norte-Sul chega a São Paulo

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Mais uma vez escrevo sobre a Norte-Sul, a estrada de ferro que eu lancei como Presidente da República e que naquela época foi combatida de toda maneira, chamada de, como foi a Belém-Brasília, estrada das onças — que ligava o nada a coisa nenhuma —, mas com o passar dos anos fez todos os críticos morderem a língua e pedir desculpas, desfazendo as críticas. E a Norte-Sul fez parte dos programas de todos os governos que me sucederam.

Ainda consegui fazer o trecho Itaqui-Estreito, a ponte sobre o Rio Tocantins, e um trecho no estado de Goiás — onde, em Janaúba, presidi ao início das obras. Meu desejo era deixá-la concluída até o fim do meu mandato, mas o combate foi tão violento que não consegui avançar.

A Norte-Sul colocou o modelo ferroviário concorrendo com o rodoviário, o predominante no País — e daí surgiu a grande resistência. As estradas de ferro foram a grande alavanca do comércio e do desenvolvimento no século XIX e, em grande parte do mundo, acompanharam a modernização da logística e continuam sendo o principal eixo em muitos dos maiores países. Nós chegamos a ter 40 mil quilômetros de ferrovias; quando assumi, apenas 10% desses estavam modernizados — muitos tinham simplesmente sido abandonados. Os trens modernos mantêm a vanguarda no transporte de passageiros, com os trens de grande velocidade imbatíveis em médias distâncias pois, param nos centros urbanos, evitando os longos deslocamentos até os aeroportos; por outro lado as alternativas de carga intermodal oferecem trunfos extraordinários nos custos de produção — lembrando ainda a importância na proteção do meio-ambiente, pois concorre com poluidores intensivos, como aviões, caminhões e automóveis.

O projeto era traçado da Norte-Sul cortando o Brasil e o integrando de Sul a Norte. Ela seria complementada por outra de Oeste a Leste, saindo de Cuiabá, interligando-se com a rede paulista até Santos, que já existe, e uma terceira, a Transnordestina, ligando o Brasil Central até o litoral da Bahia. A Norte-Sul vai do Itaqui até Brasília, aí interliga-se com a Rede Ferroviária Sul e vai até Santos.

Assim o Itaqui passa a ser o grande porto do Brasil Central e São Luís se torna o escoadouro natural de grande parte da produção de cereais e o remetente de combustíveis para a produção do Planalto Central, Mato Grosso e Goiás. No futuro o Itaqui será um dos maiores do mundo.

A Norte-Sul está pronta e já traz carga dessa região para embarcar no Itaqui. Falta agora só a aparelhar com infraestrutura e logística. Mas o anúncio de sua chegada a São Paulo significa que a interligação planejada está feita, o sonho realizado.

O Maranhão vislumbra assim o que sempre pensei: em torno de um grande porto se estabelece uma grande civilização.

O Maranhão tem a sua vocação encontrada. Depois virão o gás, Alcântara e a frente agrícola que vem de Balsas, a qual nos tornará também um grande produtor de cereais.

O preço da violência

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Durante o tempo em que estava no Senado fiz vários discursos e apresentei alguns projetos dizendo que diante da violência cotidiana – o domínio do crime organizado, a impunidade dos homicidas, a faculdade do assassino defender-se solto, o aumento das mortes violentas, tanta falta de respeito à dignidade humana – o povo brasileiro não se revoltava mais e estava se transformando num povo frio, sem capacidade de reagir e de se sensibilizar com os crimes mais hediondos.

Isto começou a consolidar-se depois que a Constituição de 88 deu muito melhor tratamento ao criminoso do que à vítima. O criminoso passou a ter direito a pensão mensal, assistência social, garantias à sua família etc. A vítima só tem a perda do seu futuro, as necessidades geradas pela sua ausência, o sofrimento de sua família, a orfandade de seus filhos, a viuvez de sua esposa e as lágrimas de sua família, pais, irmãos.

Eu posso falar, como dizia Camões, de experiência vivida. Malherbe dizia na Consolation à M. Du Périer que: “A morte tem rigores que a nada se assemelham […] E a Guarda que vela nas barreiras do Louvre / Nem mesmo defende nossos reis.”

O Brasil apresenta a maior quantidade de homicídios do mundo. Temos 12% das vítimas – e somos menos de 3% da população. E o pior ainda é que as estatísticas mostram que os jovens estão sendo assassinados e são jovens que estão matando.

Em nossa família já fomos atingidos brutalmente, porque, como disse, ninguém escapa da violência; já perdi três sobrinhos-netos, vítimas do desprezo pela vida que assola o país. O primeiro, Augusto, sobrinho da minha mulher, filho do meu cunhado Cláudio Macieira, assassinado quando roubaram sua motocicleta, no dia em que ia receber o seu diploma de engenheiro – e quando eu era presidente da República. Ele tentou resistir e foi abatido com um tiro na cabeça. A segunda, minha sobrinha Mariana, quando hediondamente foi asfixiada. E o terceiro, esta semana, Diogo, filho de minha sobrinha Concy, covardemente morto com um tiro à queima-roupa, quando tentou falar com o motorista de um carro que o trancara. O assassino não deixou nem que ele se aproximasse. De dentro do carro sacou uma arma e o matou com um tiro no pescoço.

O que restou a todos nós: suas mães, seus pais, seus filhos, seus avós, seus irmãos, seus tios, seus primos, parentes, amigos colegas? Lágrimas dor intensa saudade que não passará.

Diogo, jovem rapaz, com um futuro pela frente, cheio de vida, da alegria de viver, mergulha na eternidade, sem o conforto nem duma morte cercado pela ternura de sua mãe e dos seus, para cair no asfalto escaldante, deixando para trás seu maior dom: a vida.

Pela misericórdia divina, minha mãe Kiola o receberá no Céu, o acolherá em seu colo pela eternidade e o levará à presença de Deus.