Por Felipe Camarão

Já estava de certo modo revoltado com a caótica situação da greve dos rodoviários em nossa capital quando fui surpreendido com uma das propostas para o fim da paralisação: o fim de algumas das “gratuidades” previstas para grupos de usuários/consumidores do transporte coletivo urbano de São Luís. Tal pretensão é absolutamente inconstitucional e não deveria sequer ser levada em consideração. Embora a greve já tenha acabado, store escrevo agora apenas para deixar o ponto de vista registrado e ressaltar que se no futuro algo parecido for proposto não deve ser nem discutido.

Começo a explicar meu ponto de vista afirmando a óbvia competência do Município para tratar da matéria – transporte coletivo urbano. Logo, não há dúvidas de que a Prefeitura e a Câmara Municipal demoraram, e muito, para cumprirem seu papel constitucional (o Legislativo Municipal possui como atribuições constitucionais primordiais a legislatura e a fiscalização do Executivo), ou seja, esperaram praticamente o caos se instaurar para participarem ativamente das negociações para o término do movimento grevista.

Considerando essa premissa inicial, gostaria de explicitar algo muito importante para os consumidores – cidadãos da nossa cidade: o transporte coletivo é um direito fundamental (direito fundamental a um prestação social estatal) e como tal goza de privilégios e características inerentes a esse grupo de direitos.

As “gratuidades” concedidas a determinado grupos de cidadãos constituem um rol ainda mais explícito e específico de direitos fundamentais. Com efeito, essas gratuidades foram concedidas a grupos de consumidores – cidadãos hipossuficientes, que merecem uma tutela mais rigorosa e específica por parte do Poder Público. Ora, as gratuidades foram concedidas a idosos, pessoas com deficiência, estudantes da rede pública de ensino etc. Pessoas que se incluem nesses grupos são nitidamente mais frágeis (do ponto de vista econômico, social, político e jurídico) e não há maneira melhor e mais eficaz de se proteger o cidadão mais frágil do que lhe conferindo e garantindo a eficácia de direitos fundamentais.

Atualmente os direitos humanos (nomenclatura adotada no plano internacional) ou fundamentais (nomenclatura adotada para direitos reconhecidos na ordem jurídica interna) não devem mais ser encarados apenas como teorias filosóficas ou como fundamento para meras articulações políticas. Eles devem ser compreendidos, estudados e aplicados sob o prisma pragmático. Devem ser cada vez mais dilatados, universalizados e especificados, buscando-se amparar não apenas a maioria, mas, com maior razão e rigor, as minorias.

No caso das gratuidades do transporte coletivo na nossa cidade o que aconteceu foi uma dilatação do direito fundamental social ao transporte coletivo. Isto é, o legislador e o executivo municipal, em determinado momento histórico, decidiram, politica e juridicamente, especificar que determinados segmentos da nossa sociedade passaram a ter o direito (fundamental, frise-se) a gratuidade – como já disse são exemplos de indivíduos que passaram a ter acesso gratuito ao transporte coletivo em São Luís, por certas peculiaridades e para preservar sua dignidade: os idosos, pessoas com deficiência, estudantes da  rede pública de ensino etc.

O cerne do raciocínio jurídico aqui defendido está justamente nessa condição de direito fundamental social que o Poder Público Municipal concedeu a essas gratuidades. É que uma vez reconhecido um direito fundamental não há como se voltar atrás. Em outras palavras, não existe constitucionalmente a possibilidade de retrocesso social em matéria de direitos fundamentais sociais (princípio da proibição ou vedação ao retrocesso social).

Assim, pode-se afirmar que a proteção à segurança jurídica, implícita ao Estado de Direito, exige uma proteção contra medidas retroativas, mas não apenas isso. Exige, ainda, uma proteção contra medidas retrocessivas, como seria o caso de se pretender eliminar leis regulamentadoras de direitos sociais, ainda que com pretensão simplesmente prospectiva (valendo só da revogação em diante).

O princípio da proibição do retrocesso em matéria de direitos fundamentais sociais longe de ser algo meramente teórico, já foi devidamente reconhecido e utilizado pelo Supremo Tribunal Federal em célebre julgado, o ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125.

Dessa forma, sistematizando o que já foi dito, posso afirmar que o direito já reconhecido e assegurado a certos cidadãos ao transporte coletivo gratuito é um direito fundamental social.

Nesse contexto, a ideia/proposta de utilizar a “retirada ou revogação” de algumas “gratuidades” sob o argumento de reequilíbrio econômico-financeiro entre a Prefeitura e as empresas de ônibus é,  no mínimo, estapafúrdia. Esse pretenso reequilíbrio, que no entendimento dos donos de empresas de ônibus viabilizaria o aumento pretendido pelos rodoviários, é um direito de categoria inferior e, por isso, não se pode antepô-lo ao direito fundamental dos consumidores ao transporte coletivo gratuito.

O que aconteceu pelo que se percebe é que por boa intenção, ou mesmo por hipocrisia política (digo isso porque provavelmente, foram concedidas gratuidades sem planejamento e sem previsão de fontes de custeio), o Poder Público Municipal reconheceu o direito fundamental social a gratuidade no transporte coletivo para cerca de 30% ou 40% dos usuários–consumidores e alguém estava vendo isso como uma forma de causa de prejuízos ao sistema.

Bem, a proposta de revogação ou eliminação das gratuidades não vingou e, ao que parece, o Prefeito e a Câmara tendem a rejeitar qualquer proposta nesse sentido e é bom que realmente assim o façam. Do contrário, bastará que seja ajuizada uma ação judicial para que a inconstitucionalidade de eventual lei revogadora de qualquer gratuidade seja reconhecida. Com a declaração de inconstitucionalidade ocorrerá o fenômeno processual constitucional do “efeito repristinatório” e a lei revogada, que concedia a gratuidade, voltaria a ter plena vigência e eficácia.

No caso dos idosos o problema é menor, pois, ainda que quisessem, nem a Prefeitura, nem a Câmara, tampouco os empresários poderiam retirar o direito à gratuidade no transporte coletivo urbano. É que tal direito é reconhecido na Constituição Federal e no Estatuto do Idoso.

Diante de tudo que afirmei, deixo uma pergunta para aqueles que propuseram revogar as gratuidades, bem como para a Prefeitura, Câmara e empresários: para redução de despesas das empresas de ônibus e na tentativa de reequilibrar economicamente a relação precária entre os agentes envolvidos no transporte coletivo urbano não seria melhor, mais fácil e mais benéfico para todos reduzir tributos municipais (em específico o ISS)? Da mesma forma, não seria melhor fiscalizar com maior rigor quem se utiliza das gratuidades (implantação de sistema biométrico de identificação de usuários, por exemplo) de modo a evitar fraudes?

Se as sugestões acima não servirem ou se outras melhores não surgirem não há outra opção porque juridicamente é impossível a revogação das gratuidades já concedidas para determinados usuários do transporte coletivo urbano em razão do princípio da proibição do retrocesso social. Como diria o amigo e competente jornalista Marco D´Eça: “simples assim”.

PS: Felipe Camarão é Procurador Federal. Bacharel em Direito pela UFMA. Especialista em Direito Constitucional (UNICEUMA) e Direito do Consumidor (UNIDERP). Ex – Dirigente do PROCON/MA em duas oportunidades e professor de Direito (graduação e pós-graduação).